Quando Carlos nasceu, uma andorinha de
pés tortos pousou sobre o parapeito da janela e piou comprido, numa língua que
só ela parecia entender. Mas o recado estava dado e a sina do menino traçada: Vai, Carlos ser gauche na vida!
Carlos cresceu espiando o mundo de
soslaio, incapaz de se encaixar na forma que moldava todos os outros. Na escola
repetia de ano por não se ater ao quadro negro, seu lápis percorrendo caminhos
tão diferentes dos desenhados pelo giz. A poesia estava lá fora, na chuva, nas
pedras do caminho, no canto da andorinha...
Mas era preciso crescer e crescer
significava adaptar-se. Tentou. Aos 20 anos, arrumou um emprego. Empoleirado no
telefone, recitava frases prontas para vender seguros. A morte multifacetada
transformada num chavão.
Noivou, na esperança de que o amor o
salvasse do vazio, mas o coração vasto não se preenchia com um romance
superficial.
Para comemorar mais um passo para longe
de si, embebedou-se de lua e conhaque, dançou, festejou e, por fim, rendeu-se
ao sono no banco de uma praça qualquer. Sonhou que estava preso em uma gaiola
no meio do nada. Do lado de fora, um pássaro voava baixo, cantarolando. Só pode ser deboche, pensou com gana de
matá-lo, mas, então, ele se aproximou.
Era o anjo torto feito andorinha. Seu
canto desenhava magicamente um mapa. O xis não marcava tesouros, mas o segredo
de sua vida. Quem sou eu? Por que não me encaixo neste mundo? Dúvidas que agrilhoavam
seu espírito. Despertou, decidido a se aventurar por causa do sonho e apesar
dele.
Embarcou no primeiro trem para o nada.
Estava lotado de pernas, braços e mentes imprensadas. Não se importou. Quinze
minutos depois, um homem atrás dos óculos e do bigode o avisou da chegada à estação.
Andou sem rumo, quase arrependido de
dar ouvidos ao pássaro estúpido. De repente, deu de cara com um barranco.
Desceu aos tropeços e seguiu em frente pelo chão curvo e enlameado. Era o
caminho traçado para ele desde o início, agora o sabia. Levara uma hora e três
tombos até aquele momento, mas tudo seria esquecido e mesmo comemorado se, ao
final, encontrasse a resposta desejada.
Com uma pá na mão e uma obsessão na
mente, cavava, cavava e cavaria até o centro da Terra se preciso fosse. Isso
pensava, mas a realidade é sempre outra e o brilho sempre menor. Por isso,
sentou-se ao cair da última folha da árvore solitária e lamuriosa.
Caído também, naquele instante, viu
passar uma andorinha, como sombra da vida num segundo ilusório. Não tinha pés,
perdera-os numa armadilha do destino, espalhada aos montes pelo caminho.
Doía-lhe pensar na crueldade dos homens, doía-lhe pensar no seu próprio
egoísmo, que ia apagando aos poucos essa imagem para se preocupar consigo mesmo
mais sossegadamente.
Refeito do cansaço abandonou qualquer
remorso e retornou à sua missão: cavou, cavou, recavou e concluiu que não havia
nada ali, senão lama, lama, lama. Sentiu-se traído por seu sonho... tão real.
Viu-se só, sem estrela e sem galáxia,
no silêncio da noite eterna, até ouvir as batidas de um coração e o grito da
ave. Levantou-se para correr na direção do som, que não era outra senão o ponto
em que começara a cavar. Fez das mãos conchas, e das conchas enterradas na
terra, surgiu sua verdade, seu segredo, eram os pés tortos da andorinha.